Sons na Noite


 

 

 

Abri a porta do quarto e os meus passos deslizaram como se flutuassem sobre o chão frio, e lá fui em direcção á janela. Encostei o rosto ao vidro, senti o frio e escutei a chuva lá fora. Abri-a eo vento trouxe a chuva de encontro ao meu rosto, o som das ondas inquietas e revoltas ao longe mas apesar disso quase podia absorver o seu cheiro a mar enquanto um comboio fugia desesperadamente da tempestade num rugido rouco e aflito. Aspirei com prazer a noite acendendo um cigarro partilhado com as gotículas de chuva que o vento generosamente me doava.

"Será que o dia está longe?",pensei. Uns passos leves aproximaram-se enquanto um corpo quente se encostou a mim num abraço apertado, intenso, doce deixei-me estar, simplesmente estar em silêncio, não eram necessárias palavras. Afinal, as palavras por vezes só servem para complicar, cortar a magia dos silêncios, dos olhares mesmo do meu apesar de não a ver posso sentir o pulsar do seu corpo colado ao meu, a sua respiração quase indelével, o palpitar do seu coração, o seu comprido  cabelo cujos caracóis largos ondulavam ao sabor do vento, o seu cheiro. "Sabes as horas?" inquiri baixinho "4 da manhã, e estamos a apanhar chuva!" retorquiu ela com uma risada cristalina.Enlacei-a num abraço protector e  terno, ficamos de novo em silencio, um silencio que dizia muito mais que qualquer discurso por mais bonito que fosse, até porque as mensagens entre nós eram cada vez mais a constante troca de sensações e percepções inaudíveis, que compreendíamos sem necessidade de falar. Lá fora, os sons da noite continuavam como a querer dizer que o cinzento, melancólico e taciturno inverno não queria dar tréguas á primavera. Encostei os meus lábios levemente ao seu ouvido e perguntei num murmúrio:

"Levas-me a passear á chuva?", pela sala ecoou uma incontida gargalhada que apenas podia significar um afirmativo sim.

Alguns minutos depois já os nossos passos molhados ecoavam na calçada escorregadiaenquanto numa indiferente e quase hostil demonstração de força a tempestade tentava , sem sucesso esmagar as nossos risos, a nossa loucura, o prazer tão naturalmente simples de andar por aí com os elementos escutando e vibrando de forma quase infantil com os sons da noite.

Mais de uma hora depois escorrendo da chuva e da humidade mas imensamente felizes, mudamos de roupa dirigimo-nos á cozinha, tomamos café quente por entre pequenos toques tão cúmplices quanto provocadoramente subtis.

Subitamente agarrou as minhas mãos entre as suas apertando-as com força, e a sua voz outrora límpida era agora rouca enquanto falava "Temos ambos um caminho a seguir, não sei se ou quando voltaremos a estar juntos... Deste-me tanta paz" .Respondi com um sorriso enquanto sussurrei, agora segurando as suas mãos ente as minhas "As pessoas de quem gostamos nunca saem de nós, assim nunca nos perderemos". Ficamos assim abraçadosescutando os sons da madrugada, á espera da hora, á espera de nada, a espera tranquila de quem nada tem a perder até porque nada havia a perder.

Partiu com a leveza do vento, um olhar tristede quem não quer partir, mesmo sabendo que a vida é mesmo assim . Deixou o seu perfume de sempre pela sala e levou o meu carinho, coloquei ás costas a velha mochila de tantas caminhadas, segurei com firmeza a minha bengala branca e saí também. "Um dia talvez quem sabe, talvez um dia..."

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